26 abril 2006

Imputação

Uma parte significativa do nosso povo, especialmente nas áreas rurais, crê que os fenómenos da vida e da natureza são governados por entidades sobre-humanas e sobrenaturais. Trata-se quer do pensamento simbólico analógico (que opera mediante seres análogos aos humanos, mas mais poderosos e capazes de actuar sobre a natureza), quer do pensamento simbólico em si (no qual está em causa a eficácia imediata do símbolo)[1].
No dia 6 de Abril de 2000, por exemplo, a Rádio Moçambique apresentou no seu programa noticioso das 6 horas uma reportagem sobre os dramas vividos numa escola primária situada no distrito de Jangamo, província de Inhambane, no sul do país, na qual 200 alunos estavam com as aulas paralisadas devido ao grande número de ofídios, fugidos das cheias[2], que inundavam as salas e as redondezas do estabelecimento.
Interrogado pela Rádio Moçambique sobre a origem do fenómeno, o director da escola afirmou que se tratavam de cobras mágicas, enviadas expressamente por alguém que importava descobrir. Para o efeito, os velhos do local tinham sido contactados e preparado cerimónias especiais destinadas a localizar e a neutralizar o proprietário dos ofídios.
A crença na gestão mágica de animais está muito arreigada nas zonas rurais do país. Assim, especialmente nas províncias do Centro/Norte, onde a rede escolar é menos desenvolvida (quer em recursos técnicos, quer na qualidade dos professores) do que no Sul, os camponeses acreditam que proprietários de leões e de crocodilos os utilizam para fazer mal a outrém. Daí, afirmam, a razão por que tantas pessoas são comidas por esses animais.
Mas a crença na acção mágica à distância[3] contempla, também, os fenómenos da natureza.
Assim, na Zambézia, por exemplo, uma província do Centro do país, quando não chove é suposto que alguém prendeu (otomola) a chuva ao céu. Segue-se, então, um autêntico processo de revisão comunitária, com os contra-feiticeiros procurando o responsável pelo mal. Invariavelmente, uma mulher idosa é acusada e, frequentemente, agredida e/ou morta.
Por outro lado, uma parte significativa dos Moçambicanos vive atormentada com a acção dos espíritos. Se morrem duas pessoas numa zona, é suposto que isso só pode ser devido à acção mágica de uma parente ou, menos vezes, de um estranho. Segue-se uma laborioso processo de consulta aos curandeiros, cada vez mais oneroso em Maputo[4], capital do país.
Uma parte importante dos processos que passam em julgado pelos tribunais comunitários[5] de Moçambique é constituída pela resolução de litígios envolvendo acusações de feitiçaria, com a presença, muitas vezes, de membros da Associação dos Médicos Tradicionais[6]. A produção de prova é efectuada mediante o exame e a peritagem de indícios probantes (fenómenos estranhos, instabilidade familiar ou social, coincidência, similitude, atitude pouco habitual do acusado ou da acusada, etc.). Os condenados têm, muitas vezes, de pagar importante somas pecuniárias.
Fenómenos como os descritos[7] são especialmente visíveis nos arrabaldes pobres das cidades, em particular de Maputo, combinando-se com fenómenos de outra racionalidade. Assim, muitos doentes que se dirigem aos serviços de urgência dos hospitais são seres mestiços[8]: capazes de tomar a aspirina ou de se submeterem ao plasmódio, não perdem, porém, a oportunidade de consultar também o curandeiro e de seguir os seus conselhos. Aliás, a mesma mestiçagem opera nas zonas rurais, ainda que menos intensamente.
As minhas turmas universitárias de Metodologia de Investigação costumam ter entre 80 e 90% de estudantes que, por um lado, acreditam na causalidade metassocial (espírita, por exemplo) e metanatural e, por outro, estão, como aqui dizemos, “blindados”, quer dizer, protegidos desde a infância por uma cerimónia anti-mágica identificada por um pequena incisão no peito ou no braço. Perante este quadro, os professores de ciências sociais estão confrontados com múltiplos caminhos e inúmeras mestiçagens de imputação causal quando se indaga o social e se pergunta, sobre este ou aquele fenómeno, ao estudante: “Por quê?”
Mesmo quando a situação social muda, as representações sociais continuam actuantes, como se observa especialmente nas cidades.
A pergunta “qual é o mecanismo inerente a este fenómeno?”, é substituída por perguntas do tipo “qual é o significado deste fenómeno para nós?“, “quem está encolerizado connosco?” ou “por que razão fez ele isto?”[9]
Via educação, as pessoas são como que “formatadas” a encarar a vida e a natureza pelo prisma das forças ocultas, esteio psicológico (“eficácia moral e intelectual”, diria Comte) que sempre reencanta o mundo quando este é agressivo ou como tal sentido.
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[1] Veja Houtart, François et Remy, Anselme, Haiti et la mondialisation de la culture, Étude des mentalités et des religions face aux rélités économiques, sociales et politiques. Paris: CRESFED/L’Harmattan, 2000, pp.40-41 et seq.
[2] Cheias que afectaram especialmente o Sul e o Norte de Moçambique, matando cerca de 700 pessoas, destruindo milhares de casas e danificando centenas de infra-estruturas (aí compreendidas as de fornecimento de energia e água).
[3] Veja, a propósito, Hebga, Meinrad, La rationalité d'un discours africain sur les phénomènes paranormaux. Paris: L'Harmattan, 1998, pp.225-246.
[4] O ofício de curandeiro (que é, normalmente, também, um contra-feiticeiro) é cada vez mais procurado em Moçambique. O mercado é florescente. Os curandeiros mais ricos inserem anúncios publicitários nos jornais, têm carro e usam celular. Por outro lado, são cada vez mais numerosos os curandeiros estrangeiros que se fixam especialmente em Maputo, provocando o descontentamento dos nacionais.
[5] Tribunais cuja função é, especialmente, a de atender a problemas culturais locais, aconselhando, procurando a concórdia e aplicando, quando necessário, pequenas penas correctivas.
[6] Instituição juridicamente reconhecida, agrupando curandeiros.
[7i] A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) parece ser aquela que em Moçambique melhor explora a crença nos espíritos e na acção à distância.
[8] Veja Laplatine, François et Nouss, Alexis, Le Métissage. Paris: Dominos/Flammarion, 1997; Laplatine, François, Je, nous et les autres, Être humain au-delà des appartenances. Paris: Le Pommier, 1999.
[9] Elias, Norbert, Engagement et distanciation. Contribution à la sociologie de la connaissance. Paris: Fayard, 1993, p.94

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